segunda-feira, junho 29, 2009

Visibilidades desviadas: entrevista com Roberto Bellini
Por Eduardo de Jesus

Os trabalhos em vídeo de Roberto Bellini assumem uma vertente bastante interessante dentro da produção artística contemporânea, ao associarem uma nítida atitude crítica e política em relação ao contexto atual com uma rigorosa construção formal que dialoga, de forma tensa, com a tradição da arte e do próprio ambiente da imagem em movimento. Podemos perceber isso na sequência de trabalhos que será apresentada no Imagem Pensamento.


Em “Opaco” (2006) a sombra de quem filma aparece na imagem, aliás, parece que a função da imagem nesse trabalho é revelar essa sombra-imagem, colocando-a como uma silhueta que se incrustra e, de alguma forma, marca o espaço. Assim como Ana Mendieta incrustava seu corpo nas paisagens mais diversas, deixando a marca de sua presença, que por ali passou, Bellini também faz com que a imagem marque essa presença que se registra. Aos poucos a sombra torna-se uma elaboração formal através das diferentes distâncias entre o foco de luz e a sombra. A imagem que vemos projetada deforma a representação do corpo e assume inusitadas composições formais dentro do quadro.

O vídeo serve como dispositivo para a elaboração de um desvio das visibilidades. Bellini nos coloca em contato com aquilo que, normalmente, pelo menos em determinados registros da imagem em movimento, se configura como um defeito, mas que aqui torna-se a própria imagem fazendo uma interessante aproximação com as origens do cinema no teatro de sombras.


Esse desvio das visibilidades também marca “Escuro” (2006). Neste vídeo não podemos ver nada, a não ser algumas imagens iluminadas com um flash de uma máquina fotográfica. Muito rápido, o flash ilumina somente alguns trechos dessa caminhada pelo espaço (que parece uma casa) quase sem deixar que qualquer vestígio da imagem seja percebido. Somos desviados da imagem e colocados numa situação de apreensão em relação ao que precariamente podemos ver e aquilo que ouvimos. As imagens são percebidas no ritmo veloz do flash de forma muito fugaz, quase inapreensível.


“Jardim invisível” (2008), premiado com o prêmio aquisição no XV Salão da Bahia do Museu de Arte Moderna da Bahia, em Salvador, também se estrutura em torno de uma forma bastante tensa de visibilidade. Mais uma vez, assim como em “Opaco” e “ Escuro”, a imagem é muito escura e revela de forma muito sutil os jardins de um subúrbio americano em plena noite. Se nos dois primeiros trabalhos era uma composição formal que estruturava os vídeos, em “Jardim invisível”, além disso, há uma nítida aproximação política e crítica em torno dos modos de experimentar esses espaços privados que se tornam esvaziados pelos modos de gestão do espaço e seus territórios. Se a beleza das imagens nos encanta, guiados pela citação das cidades invisíveis de Calvino que aparece logo no início do vídeo, as questões políticas e críticas destes espaços isolados e privados ganham visibilidade. Assim, nos colocamos no entroncamento dessas linhas de força, entre a beleza e quietude dessas images, que nos são reveladas em suaves movimentos de câmera, e a nítida situação de tensão que essas apropriações e construções do espaço, típicas dos jogos de poder cotemporâneos, nos mostram.


Em “Notas de uma encenação” (2008) a aparente simplicidade formal das imagens parece nos mostrar uma simples encenação de caráter histórico e memorialista de um massacre de soldados americanos pelo exército mexicano. No entanto, ao longo do vídeo vemos que, na verdade, tudo aquilo encobre uma enorme tensão política em torno de territórios e identidades. Tudo é sutil e pode até mesmo parecer inofensivo, mas ao levarmos em conta a situação das fronteiras, as relações entre os dois países e o papel que desempenham, cada um a seu modo, no contexto global, o vídeo ganha outros sentidos que contrastam fortemente com a suposta inocência das imagens.


“Acéphale” e “Cordis” são trabalhos mais novos, ambos de 2009, que serão lançados no Imagem pensamento. “a”, desenvolvido em parceria com Suzana Bastos, foi exibido primeiramente na instalação homônima na exposição “Simbios” (2008), realizada na Casa do Baile, em Belo Horizonte e posteriormente como material para live-images, junto com outros artistas da mesma exposição, no “Simbios Remix”(2009), realizado no espaço 104, da mesma cidade. “Cordis” é o trabalho mais novo que integrará a exposição que Bellini realizará brevemente no Centro Cultural São Paulo, entre os dias 22 de agosto e 02 de novembro, junto com outros trabalhos.


Na entrevista que segue abaixo Roberto Bellini nos fala dos trabalhos mais recentes, de sua visão de territórios e espaços, noção frequente em seus trabalhos, e de sua formação.


01. A questão do território, da paisagem e do espaço aparece com bastante força na construção de algumas de suas obras. Como essas preocupações começaram a surgir em seu trabalho e como elas são tratadas em cada um desses vídeos?


Ligar a câmera, em muitos momentos, é um convite a contemplação. Desde meus primeiros vídeos esse confronto com a paisagem que é o olhar definiu o rumo de cada um dos meus trabalhos. Talvez por ter começado a trabalhar com vídeo em outro país, me concentrei no resultado desses encontros. Cada trabalho dialoga de uma maneira diferente com o espaço e a visão, em alguns como “Opaco” e “Escuro”, essa conversa gira em torno da fisicalidade da visão, sua lógica e sua influência sobre a paisagem. Já nos outros trabalhos começo a lidar com narrativas latentes que surgem desses espaços, juntando sensações, personagens e memórias, que se encontram decantadas em determinados lugares.

02. Você tem uma formação em desenho e os seus primeiros trabalhos são fortemente influenciados por isso. Qual a influência desse repertório nos seus trabalhos mais recentes?


Com o desenho me acostumei a comunicar pela visualidade. No vídeo as vezes temos a tendência de ignorar a imagem, que pode ser apenas uma conseqüência de uma ação ou situação, e que está presente apenas para nos levar ao final de um discurso. Eu tento não fazer isso, eu acredito que as imagens comunicam e que não precisam de tradução. Acho que essa confiança na imagem e no olhar são frutos diretos do meu envolvimento com o desenho.

03. As situações de visibilidade e de opacidade aparecem constantemente nas suas obras. Como você entende o seu papel como artista nessa conflituosa negociação de visibilidade e invisibilidade que marca a contemporaneidade?
Eu tento lidar com o espaço em minha volta, o que vejo, mas procuro dentro desse contexto trabalhar com um fluxo de informação mais lento do que estamos acostumados no dia a dia. Muitas vezes o que chamo de invisível no meu trabalho é apenas uma desaceleração, que possibilita uma percepção de outras camadas de significação numa paisagem.

04. “Acéphale” produzido com Susana Bastos e Paulo Beto foi apresentado como instalação na exposição coletiva “Simbios” e depois num ambiente de festa, como VJ, no “Simbios Remix”. Aqui, no Imagem Pensamento, como uma obra autônoma em single channel. O que ocorre nessas passagens? Como manter a “integridade” da obra mudando as formas de exibição e fruição?

No caso de Acéphale, que foi um trabalho feito em parceria, ela já foi concebido vislumbrando essas possibilidades de re-organização. O próprio projeto da simBIO que foi quem possibilitou esse trabalho partia desse princípio. Eu acho que cada manifestação dessas, mesmo partindo de um mesmo trabalho, se torna uma outra coisa. Você acaba tendo prioridades diferentes em cada uma. No casa específico do “Acéphale” por exemplo a edição de um vídeo linear tem muitas responsabilidades que a edição da instalação não tem, pelo tempo que o espectador se dedica a cada proposta, a relação com o espaço ou a sala escura...
Mas para mim existe um outro fator mais mundano que tem igual importância, que é a falta de oportunidades de expor trabalhos de vídeo instalação, com o devido equipamento e condições técnicas. Com isso um trabalho que teve um investimento intenso financeiro e criativo pode ser mostrado apenas uma vez. Essa maleabilidade se torna essencial para garantir uma sobrevida ao trabalho, respeitando as diferenças entre os formatos e situações, e é claro que nem todo trabalho se presta a essas adaptações.

05. Neste seu novo trabalho, “Cordis”, qual foi o ponto de partida para sua construção?

Esse trabalho foi fruto de uma temporada de 3 semanas em Cordisburgo, MG. Estava com o cineasta Sérgio Borges, filmando para um trabalho de vídeo cenário para uma peça de teatro. Durante essas filmagens muita coisa foi utilizada e muitas outras ficaram de fora. O vídeo “Cordis” surgiu desse material, e dessa vivência intensa daquele lugar, a relação com o campo, com os animais e ligação espiritual e física entre esses pontos.

06. Você teve o projeto “Fluxo submerso” aprovado no Filme em Minas. De que trata esse no projeto e quando será lançado?

O “Fluxo Submerso” ainda está numa fase bem inicial de planejamento e concepção, mas posso adiantar que se trata da produção de uma vídeo-instalação que registra a hidrografia submersa da cidade de Belo Horizonte. Os rios e córregos da cidade, hoje cobertos por pistas largas de tráfego. A idéia é torná-los visíveis novamente, emergindo de sua escuridão para o imaginário público.

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