terça-feira, setembro 18, 2007

O que o estreitamento da fronteira entre o documentário e a Arte Contemporânea implica para ambos? [2]

Genealogia incompleta de uma história em construção: interfaces e desencontros entre doc.art., segundo Patrícia Moran

O debate sobre o documentário e a arte contemporânea aciona noções como fronteiras e cruzamento de fronteiras na criação audiovisual. Se a defesa da especificidade é de um purismo pouco produtivo vale para uma leitura sobre a habitação da fronteira, sobre este lugar que é um entre, uma relação. A aproximação se dá em uma via de mão dupla. O olhar propositivo do audiovisual contemporâneo tem diversas filiações: da modificação das belas artes à crescente experimentação das imagens em movimento com a arte do vídeo.

O entendimento da arte como conceito, como um modo de se abordar o mundo e seus objetos, abre campo para a arte ser um sistema de signos, que a comunidade interpretativa autoriza ou nos obriga a ler como tal, consensos são negociados, inexistem aprioris. Alarga-se o entendimento do que vem a ser arte, fenômeno social negociado e construído por atritos mais, ou menos, bélicos. É com Duchamp que se inaugura a desconstrução como gesto da arte. A noção de obra como a criação de um objeto não resiste, prevalece a produção de conceitos, de deslocamentos nos modos de ver. Há o fazer despido de materialidade específica, a arte vale pelos questionamentos e criticas aos usos da cultura e da arte. Se até então a materialidade da representação de um quadro, escultura, etc., evocava bens imateriais, ou seja, simbólicos, agora os conceitos em objetos é o que vale. O material é lugar do jogo de sentidos, jogo de idéias. Se tudo muito arte e, num primeiro momento, muito vago, sem convenções consolidadas.
Esta fenda no sentido da arte abre uma passagem inédita para o alargamento dos modos de se fazer. Enquanto a arte já havia abalado no inicio do século a fixidez da forma e da materialidade, a preservação da especificidade persistia em instituições como museus e galerias. A história de aproximações é longa e nem sempre pacífica, um caso exemplar da resistência das belas artes a fazeres não catalogados, ainda não considerados saber é o caso de Abraham Palatnik e sua arte cinética como objeto ou em superfícies. Em 1951 foi incluído por sorte do acaso na I Bienal de São Paulo, a falta da delegação japonesa abriu espaço para seu trabalho recusado. Aquele aparelho cinecromático visto pelo júri internacional mereceu uma menção honrosa. De excluído Palatnik passou a premiado incompreendido.
Na década de 60 há uma aproximação definitiva entre a arte das belas artes, o audiovisual e distintas poéticas sejam elas voltadas para o mercado da arte, da publicidade, do jornalismo ou pequenas experimentações de fundo de quintal. No Brasil os artistas plásticos se aproximam do vídeo. Em seu gesto no audiovisual prevalecia uma programação das artes plásticas. Ainda se poderia falar de olhar das artes plásticas, tradução visual de representações de um formalismo usual na imagem fixa, no desenho e nos objetos da arte concreta.
Para se constituir como um meio com estratégias diferenciadas o vídeo precisou de tempo e o legado de artistas do cinema foi fundador. Para ficar apenas no Brasil podemos pincelar algumas exceções como o artista Arthur Omar. Fazia filmes experimentais já nos anos 70 que não cabiam na rubrica do cinema marginal ou das artes plásticas. Ivan Cardoso e seus super-8 com e sobre Helio Oiticica e seus parangolés, como HO experimentava. Fazia-se Quase-cinema conceito de Helio Oiticica homenageado em 1981 com o titulo homônimo de uma revista publicada pela Funarte. Quase-cinema é um nome para o “filme de artista” que localiza o mesmo pela fronteira, por aquilo que ele não é. Artes plásticas em dialogo com o cinema, mas ainda não institucionalizada na escala dos dias de hoje.
Tentando sair desta quase-genealogia, incompleta e pessoal, faço menção rápida a ser desenvolvida em outra ocasião sobre este projeto audiovisual de fusão formal de manifestações expressivas. O filme de Ivan Cardoso citado era à época um gesto performático para o registro cinematográfico de uma experiência de amigos. Arthur Omar fazia outro movimento, é mais próximo da nossa discussão, fazia “quase-documentário-cinematográfico”. Na mesma época o vídeo também era experimentado com formalização poética análoga ao concretismo e neo-concretismo.
Cruzamentos de signos continuaram nestas duas últimas décadas a ponto de haver o imbricamento de estratégias de representação, de visibilidade e de postura em relação à arte e ao encontro com o real. O cotidiano habitado por mediadores técnicos, por leituras de mundo aparece comentado por artistas filiados tanto às artes plásticas quanto ao audiovisual. A produção de uma situação para registro e documentação, a representação de determinadas coisas do mundo e o encontro com o real por idéias fabricadas são estratégias do documentário e da arte contemporânea. Os trabalhos “Igreja revolucionária dos corações amargurados” de Carlos Magno e “A dialogue and a landscape” de Roberto Belline são realizações de artistas formados em escolas de Belas Artes que construíram sua trajetória expressiva principalmente no audiovisual. Carlos Magno constrói uma igreja em um final de semana como meio de encontro com fieis verdadeiros. Belline transforma um encontro fortuito em documentário. No dia 29 de setembro nos encontramos para pensar nos trabalhos propostos a articulação das coisas do mundo e de sua produção. Ou o cruzamento do modo poético, observativo e performativo[1] do documentário nos trabalhos com diferentes relações com o real. O real é o lugar de observação do realizador, o filme um relato do encontro.
[1] Denominação de Bill Nichols a alguns dos tipos de documentário segundo sua clássica classificação.

Patrícia Moran teve alguns dos seus trabalhos exibidos na edição de junho do Imagem Pensamento. Nascida e criada em Belo Horizonte, morou no Rio de Janeiro enquanto cursava o mestrado na UFRJ e em São Paulo quando se doutorava em Comunicação e Semiótica pela PUC. Professora do curso de Comunicação Social da UFMG, na graduação e pós. Realiza pesquisa de linguagem em diversos meios expressivos audiovisuais explorando as possibilidades de jogos entre gêneros.
Seus trabalhos já foram exibidos em festivais de cinema e arte eletrônica, em diversos paises como: Hungria, Itália, Cuba, Venezuela, Espanha, França, Alemanha, Estados Unidos, República Dominicana, Holanda, Austrália dentre outros, conquistou mais de vinte prêmios nestes anos. Em 2003 foi realizada uma retrospectiva de seu trabalho em Buenos Aires com a curadoria de Jorge La Ferla no VII MECVAD ( Muestra Euroamericana de Cine, Vídeo y Arte Digital).