quarta-feira, outubro 17, 2007

Ensaios sobre o olhar e sobre a cegueira, por Paula Alzugaray

Muxima, assim como grande parte do corpo da obra de Alfredo Jaar têm como problemática central: o olhar (sobre realidades).

“Não o que se vê, mas quem vê e porque razões não está disposto a ver o que vê”, declarou ele certa vez.

Então, se quem vê está no centro das preocupações do artista, cabe aqui pensar quem é o artista que enxerga e que registra Angola, quando assistimos a Muxima. Que olhar ele dedica ao pais africano.

Me pergunto se é pertinente pensar o olhar de Alfredo Jaar como o olhar de um estrangeiro – dado que hoje, já há algum tempo e cada vez mais, a noção de estrangeiro vinculada a uma questão geográfica e territorial está ameaçada.

Dentro de um contexto de globalização, multiculturalismo, pós-colonialismo, pós-modernismo, etc, a percepção do que é ser estrangeiro foi sensivelmente modificada. Hoje, em um panorama que “expande” a condição do estrangeiro para “estrangeiros nativos” ou “exilados internos”, presenciamos a todo momento sensações do gênero: “sentir-se em casa com estrangeiros” ou “sentir-se estrangeiro em casa”.

Também não são incomuns os que dizem que “o mundo inteiro é um lugar estranho”. Esse parece ser o caso de Alfredo Jaar, esse chileno residente em Nova York, quando afirma, em entrevista ao periódico El Pais:

“Onde quer que eu vá, sempre serei um estrangeiro. Não pretendo me transformar em uma pessoa do lugar, sou e serei sempre um outsider. E quando faço meus trabalhos, faço-os sempre em meu nome, não pretendo representar nenhuma comunidade ou falar em nome dela de forma paternalista, tentar ser a voz dos despossuídos. É a minha opinião a que eu expresso em meus trabalhos. Na África me sinto uma testemunha, um amigo, um observador critico e solidário”.

O vídeo Muxima está atualmente em exibição numa exposição no Pavilhão Africano da Bienal de Veneza, o que não quer dizer que esteja representando a África na Bienal de Veneza, da mesma forma que o José Damasceno foi convidado a representar o Brasil ou um artista canadense a representar o Canadá.

A exposição de que Muxima participa, intitulada “Check List Luanda Pop” se pretende, ao contrario de uma representação nacional (que quer demarcar a identidade de um território, ou de um povo), um lugar de cruzamentos culturais.

Muxima divide a exposição com trabalhos de artistas de países africanos, como o Egito, a Argélia, a África do Sul, Angola, Quênia, Nigéria, etc; mas também de outros paises, como Espanha, Haiti e Estados Unidos.

Mesmo que as fronteiras geo-políticas possam estar relativizadas neste espaço especiífico da arte, continuamos tendo em Muxima um olhar estrangeiro. Por maior o número de viagens que Alfredo Jaar tenha feito à África, por maior que tenha sido o seu envolvimento nos três trabalhos que realizou lá, seu olhar continua sendo de um estrangeiro.

Não é o mesmo olhar com que o antropólogo ocidental ou o artista moderno olharam para a África, ou para o chamado “Novo Mundo”, à procura do exótico, do diferente, do desconhecido. Mas para realizar Geografia = Guerra (na Nigeria); Ruanda (sobre 1 milhão de vítimas do genocídio de 1994) e Muxima, Alfredo Jaar está olhando a África com os olhos de um artista chileno, residente em Nova York.

Em Muxima, percebo que o olhar de Jaar se demora, por exemplo, em imagens de ruínas da colonização portuguesa: a azulejaria barroca; os conquistadores colocados diante de um muro (como se tivessem sido colocados em um paredão de fuzilamento, talvez?).

Isso é parte da história de Angola, claro, que apenas conquistou a independência de Portugal em 1975. Mas é também parte da história do artista, nascido em uma região que também foi colonizada.

(A presença do conquistador está subjacente também à canção, que em uma das versões (canto 9) tem trechos cantados em português. E em outra versão (canto 10), é tocada no piano, num arranjo “ocidental”.

O olhar do artista latinoamericano está também expresso nas imagens de placas de rua com nomes de lideres revolucionários do século 20: Lenin, Guevara, Allende.

O vídeo fala do encontro entre África e cultura ocidental.

A declaração do artista de que não quer “ser a voz dos despossuídos” me remete à cena (do canto 6) em que “nativos” fazem fila para falar no microfone, mas suas vozes não são ouvidas. Permanecem ocultas sob a canção Muxima.

A voz, em questão no filme, é portanto, a voz do artista. Para Jaar, como para outros artistas documentaristas, um documento é uma expressão pessoal. E aqui voltamos ao Kino-olho de Vertov.

E por mais que ele tenha afirmado, na mesma entrevista ao El Pais, que se considera “um jornalista frustrado”, a abordagem que ele faz da realidade é oposta a de jornalistas documentaristas. Não é a denúncia. Seu intuito não é veicular uma informação. Mas “provocar afeto”.

O “provocar afeto” de Jaar se parece ao “reinserir a complexidade das coisas”, que é o intuito do documentário de Mauricio Dias e Walter Riedweg, por exemplo. SE parece também com o interesse de Alice Miceli, outra artista que trabalha com a documentação da realidade, em trabalhar na esfera do “irretratável”.

É a mesma preocupação em trazer à tona camadas de sentidos sobre os acontecimentos (trágicos) do mundo, que foram velados pelo tratamento que os meios de comunicação reservam à notícia.

É por sua critica da manipulação à qual está submetida a imagem do outro, que a obra de Alfredo Jaar me parece um “ensaio sobre a cegueira”.

White Balance, de François Bucher, já no título e na seqüência de abertura, remete não só a uma cultura nivelada pelo branco da pele, mas ao vácuo moral e ao estado de anestesia mental, produzidos pelo tratamento que a mídia e a sociedade de consumo dedicam aos grandes traumas do cotidiano.

O vídeo de Bucher se refere à mesma cegueira sugerida por Jaar, mas se utiliza de uma estratégia diametralmente oposta para falar dela. Por isso, o interesse desse programa que nos é proposto pelo Eduardo de Jesus.

Jaar trabalha com a linguagem poética do cânticos. Bucher é um hacker, um pirata multimídia, que se apropria, sampleia e sobrepõe camadas de imagens e sons dos mais diversos meios de comunicação – inclusive das câmeras de vigilância - para desvelar os esquemas de sistemas de controle. Lembramos de Muntadas, do detournement de Guy Debord.

A partir de recortes de outros discursos, o filme constrói um discurso sobre a tensão entre o nativo e o estrangeiro (home and abroad). Em sobreposições de discursos, relaciona o americano nativo com o bem; e o imigrante estrangeiro como o mal. As feições brancas do cidadão ocidental versus a face de satã na figura do estrangeiro.

Para ilustrar essa luta do bem contra o mal que toma conta do discurso midiatico dos Estados Unidos pós-11 de Setembro, Bucher estabelece um paralelo entre o evento trágico e o longa-metragem “Efeito Colateral”, que entrou em cartaz na mesma época.

Na dinâmica da “vida que imita a arte” versus “arte que imita a vida”, o terrorista do Afeganistão que atirou os aviões contra as torres é relacionado ao terrorista colombiano que mata a mulher e o filho de Swazenegger.

Aqui, de forma inesperada, o autor, François Bucher, colombiano nascido em Cali e residente em Nova York, se coloca no filme. Final, ele compartilha da nacionalidade do terrorista da ficção.

Questões como nação, nacionalismo, identidade nacional, racismo, xenofobia e imperialismo (tratadas também em Muxima) são vistas em White Balance de forma mais agressiva.

Com isso, quero colocar que o documentário é esse território em que nos deparamos com o fato estrangeiro, e com a cegueira que ainda temos em relação a ele, e onde nos enxergamos, direta ou indiretamente.


O texto acima foi apenas o roteiro utilizado por Paula Alzugaray durante o debate na mostra Interseções.

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