Nove vídeos no jogo da imagem
Por João Dumans*
Em 1976, a artista Regina Silveira, engajada naquelas que eram ainda as primeiras experiências da videoarte brasileira, realiza um pequeno filme com pouco mais de dois minutos chamado Campo. Com o dedo indicador, margeando as quatro linhas do quadro, a artista percorre uma superfície plana registrada pela imagem, como se buscasse delimitar seu campo visual. Ao mesmo tempo em que aventura-se por esse novo espaço enquadrado pela tela, descobrindo seus contornos, sua aspereza, o movimento delicado da artista parece por vezes querer dizer “então aqui está, é isso: minha mão e a imagem”. Dupla descoberta sob o signo da qual o vídeo se fará presente na trajetória da arte brasileira: de um lado, a revelação de si mesmo, do próprio corpo, sua solidão em frente à câmera, sua plasticidade e resistência, seus limites, explorados exaustiva e mesmo violentamente. De outro, a descoberta de um novo meio, um novo suporte, ele também profundamente maleável, suscetível a todo tipo de riscos, de transformações e passagens.
Atualmente, em meio aos vários caminhos percorridos pelo vídeo nas últimas décadas, e em meio às inúmeras teorizações a respeito de sua natureza, ainda encontramos algo dessa curiosidade inicial – aventura solitária no quadrado branco – nas experiências de boa parte dos artistas que dele se valem em seus trabalhos. Para além da mídia e de suas especificidades técnicas, mas ainda assim graças a elas, o vídeo parece ter nos legado uma outra forma de se fazer e de se pensar as imagens. Mais do que um suporte, uma situação. Implicação imediata do artista, seu corpo, sua fala, sua idéia, seu olhar. De alguma forma, é essa urgência da criação - simplicidade de meios, de princípios - que marca o recorte dos trabalhos escolhidos para esta mostra. Outra característica diz respeito ao contexto de produção ao qual pertencem: contexto, um tanto vago e discutível, das artes plásticas, ou da arte contemporânea, o que evidencia simplesmente que os filmes apresentados dialogam constantemente com outras práticas e materiais. O dispositivo mesmo de exibição e circulação desses trabalhos - a “exposição” - revela em parte a natureza desse diálogo, já que a maioria deles foram apresentados pela primeira vez em conjunto com instalações, esculturas, pinturas, desenhos, fotos, etc.
Mas que “campo” é esse que Regina Silveira desenha com a ponta dos dedos na curta duração de seu filme? Em primeiro lugar, como já foi dito, o “campo visual”, que de forma um tanto grosseira pode ser definido como o espaço limite do quadro, demarcação primeira de tudo aquilo pertence ou pode vir a pertencer à imagem. Enquanto resultado do enquadramento, o campo define aquilo que é e aquilo que não é visto pela câmera. No cinema, a noção de campo está ligada de maneira decisiva à impressão de realidade causada pela imagem do filme. Contudo, há um outro sentido que poderia ser atribuído a este “campo”, se pensarmos que muitas vezes a “impressão de realidade” é justamente aquilo que vai ser colocado em questão. O campo pode ser, simplesmente, numa acepção mais banal do termo, o espaço no qual se desenrola um jogo. Nesse caso, mais do que um “duplo” do mundo, a imagem seria esse lugar capaz de acolher idéias, embates e invenções poéticas que redefinem a toda hora o seu papel e a sua natureza. A menção ao jogo não remete necessariamente a sua concepção usual, com a presença de jogadores, regras e a intervenção mais ou menos determinante do acaso. Aqui, o jogo é tudo aquilo que perturba a ordem do mundo e das imagens.
Algumas das questões, portanto, que se colocam a partir desse recorte são as seguintes: que tipos de jogos consigo mesma a imagem é capaz de abrigar? Como as proposições a princípio simples destes trabalhos podem subverter nossas expectativas em relação a ela? Que “foras-de-campo” estas imagens convidam a habitar o quadro? Que relações, poéticas, lúdicas ou críticas podem ser estabelecidas nesse espaço de idéias, performances e olhares? Na verdade, são questões que não se dirigem ao conjunto de filmes como um todo, até porque são bastante distintos entre si, mas a cada um deles em particular.
O dentro, o fora e os fundos falsos
Dizíamos que o “campo visual”, enquanto resultado do enquadramento, define aquilo que é e aquilo que não é visto pela câmera. Define também, como conseqüência imediata, aquilo que o espectador vê ou não. Ao menos em parte, podemos dizer que o encantamento que as imagens em movimento nos causam provém desse jogo de ocultamentos e visibilidades – somos conduzidos por aquilo que vemos e seduzidos pelo que ainda não nos foi dado ver.
Na pequena caixa de música que é Where are you going? (2008), de Susana Bastos, estamos a meio caminho dessa ilusão. Duas pernas finas, esculpidas em bronze, passeiam pelo quadro, ora ensaiando os passos de uma dança graciosa e desajeitada, ora em busca de um equilíbrio precário com a superfície do chão. Como nos velhos espetáculos de marionetes, as pernas são conduzidas por dois fios presos às suas extremidades, responsáveis por dar vida e movimento às esculturas. Vez ou outra, esse mecanismo que supostamente deveria estar fora da imagem se revela no quadro, e é a própria ilusão do movimento que se desequilibra. Logo, as pernas estão de pé outra vez, retomam seus passos desajeitados que ocultam ainda uma outra ilusão - a de serem idênticas (duas pernas esquerdas, gauches). Ao tocarem-se, as duas esculturas produzem elas mesmas a trilha sonora que anima seu movimento, como numa caixa de música (aqui, imprevisível em seu percurso) onde o fim da dança corresponde necessariamente ao fim da melodia. Em contraste com outras obras da artista, que trabalham o aprisionamento de esculturas de bronze similares, em diferentes escalas e com maior carga “dramática”, o vídeo investe no caráter lúdico e poético que a animação, desde seus primórdios, empresta com seus truques aos pequenos materiais a que dá vida.
A descoberta e redefinição constantes desse princípio de vida que anima os objetos ocupam o centro do trabalho de Sara Ramo, que participa da mostra com o vídeo Traslado (2008). Nele, a artista desfaz uma espécie de mala sem fundo (ou o fundo é o mundo?) que parece constituir o inventário de uma longa viagem. Aos poucos, o espaço vai sendo tomado por uma infinidade de coisas, e nos damos conta de que o importante não é tanto de onde elas vem (de que viagem, ou de que fundo) mas que simplesmente estão ali, acumuladas umas sobre as outras para, logo em seguida, serem deixadas para trás – desfazer a mala não como condição de chegada, e sim, de partida (de preferência, partir sem mala, ou dentro dela, tanto faz). Assim como em outros trabalhos, Sara descobre aqui esses estranhos fundos falsos da imagem e do mundo (alçapões, espelhos, gavetas, portas secretas) onde as coisas se escondem (como na série fotográfica Como aprender o que acontece na normalidade das coisas - 2002/2006), se multiplicam (como na instalação Uma e outra vez lá, mesmo que aqui - 2005) ou por onde se infiltram em outros espaços (como no O jardim das coisas do sótão - 2004). O resultado desse trânsito revela sempre uma outra face dos objetos, iluminados pela banalidade dos pequenos deslocamentos de que são vítimas.
Em Objetos do Desejo (1999), de forma semelhante, Marco Paulo Rolla habita o interior de uma pilha de móveis repleta de atalhos e passagens secretas, embora vejamos apenas os deslocamentos exteriores do artista por entre um cômodo e outro dessa casa muito pouco usual. Reiteradamente rejeitado pela pilha de objetos e por suas partes, o corpo é obrigado a se acomodar a cada hora a uma nova situação, espremendo-se entre três armários, um frigobar, uma mesa e um sofá. Os caminhos traçados dentro desse labirinto permanecem inacessíveis ao espectador, sugerindo uma espécie de “fora-de-campo” dentro da própria imagem. No jogo entre o visível e o invisível, entre os trabalhosos deslocamentos interiores e as passagens exteriores, o registro dessa performance acaba flertando com gêneros tão distintos quanto a comédia e o suspense, já que nunca sabemos por onde o corpo pode entrar ou sair. Por vezes, ele parece obrigado a se adaptar aos desígnios dessa massa de móveis, o que acaba invertendo a lógica de pertencimentos sugerida pelo título – ou seja, não são tanto os móveis os objetos do desejo, mas o próprio corpo, que passa a pertencer a eles. Numa chave mais contemplativa, sem abandonar o confrontamento lúdico com espaços e materiais os mais diversos, a idéia de incorporação física surgirá em trabalhos posteriores do artista, como na série de vídeos Paisagens, em que o corpo se projeta sobre grandes áreas abertas (uma praia, uma floresta, uma montanha) para, em seguida, ser absorvido por elas.
Ainda entre os vídeos que trabalham as relações entre o visível e o invisível, entre o campo visual e o extra-campo da imagem, está Saint Emilion (2009), de Ilan Waisberg. De forma distinta dos demais, o vídeo em questão não surge de uma proposição direta do artista, e tampouco vale-se de sua presença imediata no interior do quadro. Pelo contrário: é a distancia imposta pela contemplação e pelo enquadramento da imagem que fazem oscilar o sentido de uma cena a princípio simples, captada diretamente do “real”. A ação central do vídeo, que em qualquer lugar poderia ser resumida simplesmente como “três homens puxam um corda”, transforma-se aqui em algo do tipo “três homens puxam uma linha branca que se desprende da parte superior do quadro”. É exatamente entre essas duas possíveis definições que se descortina o estranhamento causado pelo filme. Por um lado, o trabalho cotidiano, por outro, um esforço que resulta inútil e que redefine em sua duração a natureza da imagem. Como em outros trabalhos do artista, o que está em jogo aqui é este pequeno ajuste de contas com a nossa própria percepção, muito afeita aos consensos que regem formas já estabelecidas de ver o mundo. Transformações operadas em materiais eletrônicos de consumo popular (como na série Gambiônicos) e recortes de situações banais do cotidiano (tendo como pano de fundo a geografia artificial dos prédios e condomínios mais “modernos”) revelam sempre novas formas de visibilidade para esses objetos e espaços.
Controle, descontrole e outros jogos
As aproximações e apropriações do universo cotidiano – de suas práticas, rotinas, imagens, materiais – redefinem muitas vezes a forma como o percebemos, ao mesmo tempo em que criam outros desenhos de mundo dentro de uma realidade que temos como certa. Aqui, o controle das variáveis em jogo pelos artistas é apenas parcial, e seus gestos abrem brechas para que formas de desajuste e descontrole se infiltrem no campo da imagem.
As performances e ações de Cinthia Marcelle, por exemplo, nos colocam com freqüência diante de um impasse, tendo em vista a maneira como seus trabalhos se inserem no universo cotidiano. Ao mesmo tempo em ensaiam uma aproximação do mundo, numa assimilação dos mecanismos e práticas que regem o funcionamento das coisas, eles marcam sempre uma espécie de incompatibilidade entre as proposições da artista e o circuito no qual sua ação se insere. No vídeo Unus Mundus - Confronto (2005), a performance de malabaristas com fogo no sinal, já tão bem incorporada ao ritmo de vida das grandes cidades, transforma-se num espetáculo que rompe com sua lógica habitual, e acaba por constituir uma verdadeira frente de embate com o trânsito, signo mais que evidente da indiferença contemporânea. Nos demais trabalhos da série Unus Mundus, por meio de multiplicações e simultaneidades, a artista desenha campos de contato com a vida cotidiana, perturbada pela infiltração de novos elementos nos jogos que definem a sua ordem. Se a dimensão pública dessas intervenções é imprescindível para reiterar seu caráter político, o outro trabalho da artista na sessão, em parceria com Tiago Mata Machado, leva o jogo das afirmações e diferenças para um outra esfera. Buraco Negro (2008) é, antes de qualquer coisa, um filme sobre a construção da intimidade. Sobre uma intimidade primeira, desajeitada e como que recém descoberta, e sobre uma intimidade ancestral, mítica, quando os suspiros de duas forças desconhecidas (mas já homem e mulher) sopram mapas provisórios sobre o fundo negro do universo.
Bem menos românticos são os mapas desenhados pelas numerosas ferramentas tecnológicas que invadem nosso cotidiano. Em Tokyo (2008), de Rodrigo Matheus, um zoom out no Google Earth revela pouco a pouco os ícones que identificam diferentes rotas, serviços e informações relativos à cidade. À medida que a distância aumenta, os ícones se acumulam, até tomarem por completo a superfície do território mapeado. Num dado momento, essa massa informe de dados parece se descontrolar, definindo provisoriamente sua lógica de ocupação do espaço (a pequena desordem é liderada pelos ícones da “DG – Digital Globe”, maior fornecedora comercial do mundo de imagens por satélite e pelos do “You Tube”, que mapeiam os usuários e seus respectivos vídeos no serviço). A apropriação e reinvenção de formas industriais, dispositivos eletrônicos e sistemas de segurança e controle são uma constante no trabalho do artista. Juntas, as subversões operadas nesses diversos níveis revelam novos universos, espelhados na ficção gratuita de imagens e tecnologias que constitui o nosso tempo.
Em Quarta-Feira de Cinzas/Epílogo (2006) Rivane Neuenschwander, em parceria com Cao Guimarães, registra um exército de formigas que carregam as sobras das folias de carnaval. O penoso exercício acaba se convertendo num curioso espetáculo, quando confetes coloridos, recobertos previamente de açúcar, começam a desfilar por entre os galhos e folhas secas da mata – imagem mais que emblemática, diga-se de passagem, do feriado que dá titulo ao filme, espremido entre a alegria passageira dos dias de festa e o imperativo do trabalho que se anuncia. Com incursões freqüentes ao mundo dos pequenos seres domésticos, a artista passou a gerenciar uma extensa rede de colaboradores, responsáveis em grande parte pela execução de seus trabalhos. São as formigas que devoram em ritmo frenético o mapa mundi feito de mel em Contingente (2008), assim como são as lesmas que conformam as cartografias imprevisíveis de Carta Faminta (2000). Em jogos de trocas e acasos sugeridos, Rivane parece refletir sobre a passagem, tanto no tempo, quanto no espaço, dos seres e das coisas. É sobre os rastros dessas passagens que seu trabalho nos convida a ver, ao fim e ao cabo, as evidências da própria vida.
No último trabalho da sessão, o coletivo “Selvagens Nocivos” faz da imagem o espaço de contato direto com o espectador, numa espécie de vídeo-manifesto caseiro, em que fragmentos de inscrições reveladas pelos artistas confundem-se com situações rotineiras encenadas por eles. O sentido dos enunciados permanece suspenso nessa via de comunicação precária mediada pela câmera. Experimento que nos remete àquelas primeiras aventuras do vídeo, onde uma imagem recém descoberta, turva e cheia de ruídos, expressava a urgência do discurso, do pensamento, da política e da poesia – da arte, enfim.
* João Dumans é pesquisador de cinema. Foi programador do Cine Humberto Mauro, no Palácio das Artes, curador do Cineclube Curta Circuito, e curador assistente da Mostravídeo Itaú Cultural. Participou de comissões de seleção e programação de festivais como o forum.doc.bh e o Festival Internacional de Curtas de BH.